Jayme Buarque, do INEE: Carro a etanol, você ainda vai ter um?

O Brasil é o único país do mundo que tem uma extensa rede de distribuição de etanol. Embora esse combustível possa competir com a gasolina, o INOVAR AUTO, política instituída em 2012 para melhorar o desempenho dos carros, desconhece as vantagens do etanol sobre a gasolina como combustível.

A diferença mais conhecida entre os dois combustíveis é que um litro de etanol contém menos energia do que um litro de gasolina. A partir dessa informação generalizou-se uma regra pela qual só vale a pena abastecer um carro flex com etanol quando ele custar até 70% do preço da gasolina. A “paridade”, relação que torna o consumidor indiferente entre os dois combustíveis seria de 70%. Como veremos, trata-se de uma percepção equivocada, que vem gerando uma orientação nociva à economia do país.

Esses combustíveis, no entanto, diferem em muitos outros aspectos menos visíveis, porém fundamentais ao desempenho do motor, nos quais o etanol supera a gasolina. Assim, por exemplo, apesar do aspecto homogêneo da gasolina, ela é, na verdade, uma mistura de centenas de derivados do petróleo. Em contraste, o etanol hidratado (distribuído nas bombas) tem um único combustível (o etanol) e 5% de água. Ponto para o etanol.

Comparando propriedades, como “calor latente de evaporação”, “resistência à combustão sob pressão”, “razão estequiométrica” e outras, o etanol é também melhor que a gasolina, se for usado em motor projetado para aproveitar essas características. Carros a etanol, portanto, podem ter um desempenho muito melhor do que um equivalente a gasolina. Em 1985, quando 90% dos carros novos vendidos eram a etanol, eles eram 15% mais eficientes do que os carros a gasolina (comparados em MJ/km).

O desenvolvimento dos carros a etanol por aqui parou quando o preço do petróleo diminuiu em fins dos anos 80. Quando voltou a crescer no fim do século o etanol ficou muito competitivo, mas as montadoras não voltaram a oferecer os carros a etanol. Pressionadas pelo mercado, só em 2003 lançaram os carros “flex”, porém bem menos eficientes quando usavam etanol do que quando abastecidos com gasolina. Não obstante, a paridade era tão favorável ao etanol que os compradores de flex só usavam o etanol. Os flex assim aparentemente resolviam o problema do consumidor e criaram um novo e importante mercado. Até os produtores de etanol que viram explodir a demanda, tirando o setor de cana de uma crise, saudaram a novidade sem perceber que, em longo prazo, poderiam estar dando um tiro no pé.

A tecnologia flex nasceu nos EUA no início dos anos 90, respondendo a uma preocupação ambiental, para estimular o uso de combustíveis renováveis. Foram dados incentivos para as montadoras que produzissem carros que pudessem ser acionados por etanol quase puro (E85, uma mistura de etanol com 15% de gasolina). O desenvolvimento foi facilitado porque a gasolina já é, naturalmente, uma mistura de centenas de produtos combustíveis e os controles eletrônicos, já usados, facilitavam o projeto um motor. A montadora recebia incentivo fiscal e compensavam a venda de outros modelos mais poluentes. Hoje nos EUA circulam 10 milhões de flex embora a rede de postos com E85 seja pequena e concentrada nos estados produtores de etanol. Mais de 60% de proprietários de flex desconhecem que o carro pode ser abastecido com etanol.

Os motores flex fabricados, portanto, usam motores a gasolina que também funcionam com o etanol, mas que estão longe de apresentarem a eficiência que seria possível com um motor a etanol; um carro a etanol desenvolvido pela RICARDO Motors em caráter experimental, teria uma paridade de 100% (ou seja, com um litro de etanol faria o mesmo percurso que um litro em um carro a gasolina equivalente!) e o motor é bem mais compacto do que o motor a gasolina equivalente. Embora os carros a etanol não tenham deixado de existir, o INOVAR AUTO, na sua versão original, trata os carros flex como os únicos apropriados para consumir o etanol. Na regulamentação, foi fixada uma meta de consumo energético (1,8 MJ/km) igual para os dois combustíveis, tirando das montadoras o interesse de produzir um carro mais eficiente quando abastecido com etanol. Afinal, motoristas que hoje só se abastecem com etanol e teriam um alto interesse por comprar um “flex sabor etanol” que fosse otimizado para usar etanol e tolerassem usar gasolina.

Talvez para corrigir a falha, em 2014, a legislação que modificou o INOVAR-AUTO (Art. 41-B da Lei 12.996/14) estabelece que o “Poder Executivo, no âmbito do Inovar-Auto, poderá estabelecer alíquotas do IPI menores para os veículos que adotarem motores flex que tiverem relação de consumo entre etanol hidratado e gasolina, superior a 75%". O mesmo artigo, porém, prossegue dizendo “...sem prejuízo da eficiência energética da gasolina nos veículos novos”. Como as eficiências do flex usando etanol ou gasolina resultam de uma solução de compromisso, na prática fica limitada a possibilidade do flex mais eficiente, quando usando o etanol.

O mais lamentável é que o condicionante “sem prejuízo da eficiência energética da gasolina” advoga pelo combustível fóssil que, além de mais poluente fixa no país, por litro, um décimo da mão de mão de obra fixada pelo etanol!

Considerando que uns 5 milhões de motoristas usam exclusivamente o etanol, resta a esperança que montadoras, na busca de novos mercados, descubram esse nicho para vender carros que o carro a etanol, cuja fabricação felizmente não foi proibida.

Será que voltaremos a ter carros a etanol?

Autor: Jayme Buarque de Hollanda, Diretor Geral do INEE e Secretário Executivo do PrEE - Programa Etanol Eficiente

06/02/2015

[Fonte: INEE]


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