Jayme Buarque, do INEE: Aperfeiçoando o uso de etanol
No final do século passado, o forte aumento do preço da gasolina fez ressurgir, no Brasil, a procura por carros a etanol, cuja fabricação tinha sido praticamente interrompida. Como nesses anos a tecnologia de carros tinha evoluído, a indústria de automóvel decidiu não investir na modernização do motor, que atenderia apenas o mercado brasileiro.
Decidiu, então, usar a tecnologia flex, desenvolvida nos EUA onde a lei do ar limpo, de 1992, estimulou a criação de carros flex que tanto pudessem usar gasolina, quanto E85, combustível com “pelo menos” 85% de etanol. Além de incentivo fiscal, a montadora, obrigada a respeitar um nível máximo de emissões do conjunto de carros novos por ela fabricados, podia compensar a venda de modelos poluentes com a venda dos flex.
Como o combustível de E85 era praticamente inexistente nos EUA, os flex desenvolvidos têm motores projetados para usar gasolina que permitem o emprego de etanol como um “quebra galho”.
Quando o flex foi lançado no Brasil em 2003, todas as montadoras adotaram o mesmo conceito. Como o preço do etanol era então muito competitivo, o flex foi bem aceito pelo mercado, muito embora usando etanol de forma menos eficiente que os antigos modelos a etanol. O flex tornou-se, assim, uma solução de marketing bem sucedida a julgar pelos 25 milhões de carros que circulam no país, onde responde por mais de 90% das vendas de carros novos. Os demais carros novos são a gasolina. Nenhum carro a etanol é produzido, embora sua venda não esteja proibida.
A dificuldade para que o etanol seja usado de forma mais eficiente se deve a uma percepção generalizada de que suas vantagens sobre a gasolina se limitam apenas à questão ambiental. A meu ver, a mais problemática é a regra pela qual, para haver paridade econômica, o preço do etanol pode ser, no máximo, igual a 70% do preço da gasolina. Essa regra, usada pela maioria dos proprietários de flex, corresponde, aproximadamente, à relação entre os poderes caloríficos dos dois combustíveis, o que lhe confere um cunho “científico”.
Em motores de combustão interna essa comparação não faz sentido. O desempenho do motor, apropriado ao uso dos dois combustíveis (“ciclo Otto”), depende de diversas características menos intuitivas que o “poder calorífico”. Em todas, o etanol supera a gasolina. Usado em motor adequado, o consumo (km/litro) de um carro a etanol pode ser da ordem de grandeza do consumo de um carro semelhante, a gasolina. O motor otimizado para usar o etanol, além disso, é mais compacto e leve que o equivalente a gasolina.
Devido à explicação “científica” da paridade 70, a regra se tornou um paradigma. Está embutida na legislação automotiva, nos programas de mensuração de desempenho e incentivo ao aumento da eficiência veicular do governo. Isto criou um conformismo, mesmo em segmentos da economia que só têm a perder com o mau uso do etanol.
Na prática, a paridade dos flex varia de carro para carro. Depende do modelo, do ano de fabricação, da especificação da gasolina (que já mudou várias vezes), da temperatura do ambiente em que é usado e até depende da habilidade do motorista. Medidas feitas por revistas especializadas e comentários na INTERNET confirmam que a paridade é, em geral, maior que 70%. Uma gestora de frotas concluiu que a paridade média medida em quase meio milhão de carros que administra se aproxima dos 80%.
O aumento de eficiência no uso do etanol veicular no Brasil, em curto prazo, vai depender de um melhor conhecimento desse combustível. Para tanto é fundamental desconstruir o Paradigma 70 junto aos consumidores e estimulá-los a medir em cada caso.
Em longo prazo há duas possibilidades que passam por uma atitude das montadoras: 1) voltar à produção de carros a etanol; e/ou 2) desenvolver carros flex que, invertendo a lógica atual, sejam otimizados para usar etanol e “quebrem um galho” com gasolina. Vai ser preciso melhorar a percepção dos consumidores e aperfeiçoar a legislação atual que, implicitamente, embute o princípio equivocado. Como mais de quatro milhões flex só usam etanol se a indústria perceber interesse do mercado e receber sinais corretos do governo não ficará indiferente a este expressivo nicho de mercado.
O uso eficiente do etanol veicular, além dos impactos ambientais e sociais favoráveis, afeta positivamente a economia dos consumidores e de todos os agentes ao longo da sua cadeia de produção e transformações. Sua maior difusão contribuirá para revigorar a oferta do único combustível renovável produzido em larga escala sem subsídios e sem monetização de suas externalidades positivas. Também contribuirá para diversificar a produção da indústria automotiva visando novos mercados, aqui e no exterior.
O momento para avançar no tema é particularmente oportuno. O país pode voltar a liderar o tema, pois tem um mercado potencial suficientemente grande para absorver novidades e tem ampla rede de distribuição de etanol já instalada.
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Autor: Jayme Buarque de Hollanda, Diretor Geral do Instituto Nacional de Eficiência Energética 21/11/2016
[Fonte: Revista Frotas e Fretes Verdes 2016]
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