Osório de Brito, do INEE: A vulnerabilidade e a fragilidade do Sistema Interligado Brasileiro
A cogeração a gás esbarra em obstáculos de toda natureza, apesar de sua elevada eficiência e de sua capacidade de fornecer excedente à distribuidora a que se conecta.
Em 2012, o país aproximou-se dos mesmos riscos que o levaram a decretar, em 2001, um racionamento do uso da energia elétrica: Furnas apresentou-se, em dezembro daquele ano, inicio do período chuvoso, com apenas 12% de sua capacidade de reservação, apenas 3,4 m acima do mínimo necessário para que a usina operasse normalmente; os demais reservatórios, localizados no Centro-Oeste e no Sudeste, com apenas 30% de suas capacidades; estes fatos provocaram que 68 termelétricas, existentes na época, passassem a operar a plena carga. Esta estiagem levou o consumo de gás natural ao 2º recorde histórico, 70,9 milhões de m3 por dia demandados pelos consumidores em novembro, o que significou uma alta de 41,5 % sobre o mesmo mês do ano anterior.
Situação similar ocorreu em 2013: as termelétricas operaram, em plena carga, por parte considerável do ano. 2014: novamente o mesmo cenário e o mesmo risco. Haverá alguma dúvida que o modelo atual, em que se baseia o Setor Elétrico brasileiro, encontra-se vulnerável, em demasia, em relação ao clima, acrescido, ademais, pela dependência do parque eólico à instabilidade própria dos ventos? Três anos seguidos de problemas de mesma natureza parecem indicar que uma reformulação deste modelo faz-se mister.
Com efeito, o Setor Elétrico brasileiro desenvolveu-se em uma base hídrica construída próximo aos centros de consumo e com capacidade de reservação de molde a permitir transferir energia de uma região a outra a fim de cobrir estiagens; ademais, esta capacidade de reservação era suficiente para poder despachar as hidrelétricas com um mínimo de participação térmica. Aos poucos, o modelo transformou-se, paulatinamente, em termo-hídrico com uma significativa presença de gás natural.
Esgotaram-se, por sua vez, as possibilidades de construção de novas hidrelétricas próximas aos centros de consumo e dotadas de grandes reservatórios; os aproveitamentos dirigiram-se para a Amazônia, região em que, por razões topográficas e ambientais, inviabilizou os aproveitamentos com capacidade de reservação, tornando-os a fio d´água. Estreitou-se, obviamente, a capacidade de armazenamento de água que, antes, atendia a demanda; e este estreitamento ocorre concomitantemente com o próprio crescimento do consumo elétrico e sem que houvesse a implementação de uma política de eficientização energética capaz de aumentar a produtividade geral do sistema, seja por ações junto ao consumidor final, seja na busca de soluções intra-sistema interligado. O país persiste ignorando soluções descentralizadas, fazendo crescer a complexidade da malha de transmissão e, consequentemente, aumentando a fragilidade do Sistema em face à exposição das linhas às intempéries, em um território sujeito a fortes temporais dotados de relâmpagos e até de granizo, próprio de um clima tropical ou semi-tropical,
Diante desta conjuntura, vulnerabilidade e fragilidade do Sistema, que fazer? Descentralizar a geração, levando-a para próxima da carga e utilizando tecnologias eficientes de forma a complementar o parque centralizado, comandado pelo ONS. Com efeito, a geração distribuída possui a capacidade de evitar o uso da malha de transmissão, na medida em que se localiza junto a carga, e de evitar o custo do investimento neste parque centralizado, coberto por todos os consumidores, na medida em que se torna um investimento, via de regra, realizado por interesse do consumidor, aditando, ademais, outras vantagens ao Setor Elétrico.
Entre as alternativas de geração distribuída, releva-se a cogeração, seja a gás, seja a resíduos industriais ou agro industrias combustíveis, como a biomassa da cana de açúcar e os resíduos de fábricas (as siderúrgicas, as moveleiras ou as papeleiras, entre outras). Esta alternativa, detentora de elevada eficiência, permite produzir, a partir de um único combustível, energia térmica e elétrica, de forma a alimentar industrias e/ou estabelecimentos comerciais ou prediais, com eficiências superiores a 75%, alcançando, por exemplo, em determinadas fábricas, como a de refrigerantes, até 95%. Ademais, ao maximizar a geração térmica, além de atender eletricamente o seu hospedeiro, poderá fornecer excedente elétrico ao sistema.
A cogeração a gás esbarra, apesar de sua elevada eficiência e de sua capacidade de fornecer excedente à distribuidora a que se conecta, em barreiras de toda a natureza, entre as quais:
i) a sua dependência ao próprio Setor Elétrico que o obriga a permanecer parcialmente em reserva a fim de atender as estiagens prolongadas ;
ii) a sua dependência à extração do petróleo, tornando-o dele refém; o seu preço, contrariamente a todas as tarifas administradas, como a da própria eletricidade, revisadas anualmente, o gás o é trimestralmente; baseia-se em uma formula que, artificialmente, o torna um bem importado, de valor elevado se comparado com outros países e, até mesmo, com o proveniente da Bolívia.
O gás, efetivamente, não se comporta como um energético independente, como o deveria ser; é, de fato, inadequadamente inserido na matriz energética brasileira. Na realidade, é tratado como integrante do modelo em que se baseia o Setor Elétrico do país, como um abastecedor das termelétricas do parque centralizado. Por exemplo, quando não há estiagens, ele só é ofertado, de forma firme, às distribuidoras que operam em cada Estado, enquanto, aos consumidores livres, já existentes em alguns Estados , é oferecido sob forma interruptível, incompatível com os interesses do consumidor, tornando-o, nestes casos, só utilizável para o transporte.
Nos países europeus, por exemplo, a cogeração ocupa espaços consideráveis nas respectivas matrizes energéticas, alcançando, em alguns, cerca de metade da oferta de energia. Na Europa, não há fontes primárias em seu território, a exceção do carvão, desconsiderado por razões ambientais; o gás, por exemplo, origina-se na Rússia e no Norte da África, como, ademais, todos os demais combustíveis utilizados. Esta política de escassez obrigou-a a optar pela eficiência energética, inclusa a busca de soluções alternativas, como a eólica e a solar; em outras palavras: esta política induziu-a ao “desperdício zero”.
Neste contexto, a cogeração, não só é incentivada, como o consumidor, para o qual esta alternativa se adequa, é, também, incentivado a maximizar a sua geração térmica a fim de supri-lo eletricamente e vender o excedente à distribuidora local: obviamente, toda esta energia assim produzida evita a importação de gás, otimizando a produtividade do seu emprego.
No Brasil, a eficiência energética não se insere, de fato, em sua política e, por esta razão, a cogeração não ocupa a posição que deveria ocupar. Na prática, o país mantém o Setor Elétrico preso a um modelo que se esgota, desprovido de estratégias capazes de minimizar tanto a sua vulnerabilidade quanto a sua paulatina fragilidade.
Por fim, cabe acrescentar que, enquanto o Setor Elétrico possui uma Agencia Reguladora atuante e presente em toda a sua amplitude, desde a geração até a distribuição, a ANP, que deveria cuidar do gás desde a sua exploração até a sua entrega aos Estados, se limita a cuidar do transporte da molécula.
Urge, pois, liberar o mercado de gás e incentivar a eficientização energética, ambas ações capazes de gerar um aumento da produtividade setorial.
Osório de Brito é diretor do Instituto Nacional de Eficiência Energética
30/04/2015
[Fonte: Agência CanalEnergia, Artigos e Entrevistas]
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