Pietro Erber: Modicidade Tarifária no Setor Elétrico

A modicidade tarifária, para ser efetiva, deve refletir a eficiência da gestão do setor elétrico e das diversas concessionárias. Entretanto, em vários momentos da história do setor, os níveis tarifários limitaram investimentos, prejudicaram o desempenho das empresas e, portanto, a qualidade do atendimento aos consumidores.

Em meados da década de 1990, o Tesouro Nacional teve de assumir déficits superiores a 25 bilhões de dólares, acumulados pelas concessionárias ao longo de mais de uma década, devidos a tarifas utilizadas como instrumento de controle da inflação. Essas tarifas, que não permitiam que essas empresas obtivessem sua remuneração legal e sequer cobrissem seus custos, geraram uma situação de inadimplência generalizada, intra e extra setorial.

Com aquele acerto, os contribuintes, através do Tesouro, subsidiaram os consumidores de energia elétrica. Algumas indústrias ganharam competitividade, outras apenas obtiveram maiores lucros, e os demais consumidores, tiveram algum alívio nas suas contas de energia. Em contrapartida, a disponibilidade de recursos para que o governo realizasse investimentos e custeasse atividades de mais difícil remuneração pelos beneficiados, como saúde pública, educação e transportes, foi prejudicada. Já logo após o racionamento de 2001, o governo atribuiu aos consumidores o ônus de compensar as empresas distribuidoras pelas perdas de receita das distribuidoras decorrentes da redução de suas vendas, embora aqueles não tivessem nenhuma responsabilidade pelo racionamento.

Não é indiferente que despesas extraordinárias sejam arcadas pelos contribuintes ou pelos consumidores. Apesar de, na maioria, os contribuintes serem também consumidores de energia elétrica, o serviço mais disseminado do país, transferir custos do suprimento de energia para os contribuintes acarreta prejuízos, pela sinalização econômica divorciada da realidade, deterioração da qualidade dos serviços que decorre de situações financeiras adversas e desestímulo ao aumento de eficiência no uso da energia.

No momento atual, o setor elétrico enfrenta despesas excepcionais com o consumo de combustíveis, que ultrapassam em muito sua capacidade financeira, adequada para níveis de consumo estimados para os leilões de venda da energia das termelétricas. Essa situação financeira, agravada pelos efeitos das condições climáticas deste início de ano, reflete decisões governamentais quanto à gestão do setor elétrico, influenciadas pela preocupação com a inflação e por pressão de consumidores em busca de redução de suas tarifas. Portanto, e apesar de onerar os contribuintes, não se pode isentar o governo de responsabilidade pelo pagamento de pelo menos parte dos bilhões de reais que foram e estão sendo gastos para compra de combustíveis.

Ressalta também, no contexto atual do setor elétrico, a despesa das distribuidoras com a compra de energia que não puderam contratar, sendo que esta contratação somente pode ser feita no âmbito dos leilões de oferta promovidos pelo poder público. Como o Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), que rege a compra de energia no mercado de curto prazo alcança no momento seu máximo regulamentar, de R$ 823/MWh, os consumidores livres e as distribuidoras, insuficientemente contratados, estão sobremaneira afetados. O déficit das distribuidoras, da ordem de 3,5 Gwano, acarreta-lhes uma despesa mensal de cerca de R$ 300 milhões, a preços atuais.

A insuficiência de contratação constitui um risco que, normalmente, é assumido pelos consumidores livres e pelas distribuidoras. Entretanto, na situação atual, pelo menos parte da insuficiência decorre da anulação de contratos de suprimento em vigor, causada pela MP 579 de 2012, referente à renovação antecipada de concessões. Embora a oferta correspondente continuasse a existir, boa parte não pôde ser recontratada por não ter sido oferecida nos leilões realizados com essa finalidade, em função dos valores máximos estipulados.

Transparece, em muitas tentativas de controle de preços, recentes e passadas, um objetivo, sem dúvida relevante: a modicidade tarifária. Esta é necessária para a competitividade da economia e constitui uma exigência legal na prestação de serviços públicos. A modicidade, bem como outros atributos legais desses serviços, embora subjetivos, são relevantes.

É obvio que a modicidade tarifária, para ser sustentável, dispensando subsídios, depende dos custos do serviço. Estes não podem deixar de ser integralmente cobertos, para que não faltem investimentos e insumos operacionais, o que prejudicaria a continuidade e a qualidade da oferta. A modicidade obtida mediante subsídios sempre tem algum custo: se for à custa de agentes do setor, como nos anos 1980/90, fere os contratos de concessão e leva à deterioração dos serviços; se for a cargo do governo, acarreta custos para a sociedade.

As contas de consumo de energia não refletem apenas as tarifas destinadas às concessionárias, mas também impostos e encargos setoriais, que incluem despesas com combustíveis. Atualmente, esses adicionais, pelo vulto dos primeiros e variabilidade dos últimos, prejudicam tanto a modicidade quanto a estabilidade tarifária. Cabe, portanto, negociação no plano tributário, onde energia elétrica, derivados de petróleo e gás natural e telecomunicações, em grande parte com alíquota máxima, são responsáveis por grande parte da arrecadação dos Estados. Esses impostos, que normalmente já oneram significativamente as contas de energia, não deveriam incidir também sobre as despesas extraordinárias com combustíveis, decorrentes de uma excepcionalidade.

Enquanto até o final do século passado o sistema gerador era quase exclusivamente hidrelétrico, agora a participação da geração termelétrica não é mais apenas complementar e eventual. Cerca de 30% do parque gerador é termelétrico, cuja metade, aproximadamente, é constituída por usinas cujo custo operacional supera R$ 200/MWh, o que amplifica a variabilidade dos custos de geração termelétrica e, portanto, a necessidade de complementar a receita das empresas distribuidoras. Se esta receita decorrer de tarifas que traduzem níveis de despesas com combustíveis demasiado otimistas, frequentemente haverá necessidade de complementá-las. O momento atual do setor elétrico exemplifica esta situação. Uma solução aventada, a das bandeiras tarifárias, não parece satisfatória, tanto que ainda não foi aplicada.

Essas bandeiras, ou adicionais eventuais, de variabilidade mensal, previstas para serem aplicadas a partir de 2015, mais do que um sinal tarifário, constituem um meio de antecipar a arrecadação de recursos que, pela via tarifária normal, só ressarciriam as distribuidoras no ano seguinte. Embora tal ressarcimento seja válido e indispensável, o efeito dessas bandeiras sobre os consumidores poderá ser de grande instabilidade tarifária, prejudicando suas atividades e a racionalidade de decisões de investimento geralmente irreversíveis.

Entende-se que, a médio e longo prazo, a aderência das tarifas aos custos do setor seja do interesse tanto do governo quanto dos consumidores. Também interessa a estes que se preserve a estabilidade desses preços. Assim, será desejável que sejam adotadas medidas que proporcionem esses objetivos, mesmo que o nível tarifário exigido se torne mais elevado do que o básico atual, mas certamente não maior do que o correspondente à média dos custos agora incorridos.

A aceitação de nível tarifário mais elevado, porém estável, que assegure o pagamento das despesas com combustíveis e dispense grandes aportes extraordinários de recursos, sejam estes provenientes do governo ou pagos pelos consumidores, contribuirá melhor para a segurança destes, em particular os industriais, para os quais o acerto de decisões importantes depende do valor de seus insumos. Também propiciará o aporte de recursos para a expansão da oferta, pois situações como a atual não atraem investimentos de longo prazo.

A situação atual do suprimento, além de exigir grande sacrifício financeiro por despesas já incorridas, faz prever despesas adicionais ainda maiores. Mais grave, pelas consequências inerentes, é o risco de racionamento, ainda neste ano. A tentativa de reduzir o ônus para o governo e para o mercado tem levado à negação da gravidade desse risco e à busca de medidas paliativas, porém prejudiciais para o setor e, sobretudo, para o país.

Níveis tarifários que não remunerem os custos reais do serviço não são vantajosos para a sociedade. Os déficits se acumulam e tendem a serem cobrados inadequadamente, seja pela precariedade do atendimento seja pela redução de aportes a outros serviços de interesse público, cuja remuneração direta por seus beneficiários seja menos factível do que a da energia elétrica.

Finalmente, dados os custos e os riscos que atualmente prejudicam o atendimento do mercado, urge redobrar os esforços para que os consumidores contribuam para atenuá-los, mediante aumento da eficiência do seu uso da energia.

Autor: Pietro Erber é diretor do INEE e Diretor Presidente da ABVE
20/03/2014


[Fonte: INEE]


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