Pietro Erber, do INEE: Sugestões e Comentários sobre o Plano Nacional de Energia - PNE 2030

Cabe comemorar a recente publicação do PNE 2030, que constitui o primeiro plano que abarca a totalidade do quadro energético nacional, num horizonte de longo prazo. Esse documento, elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética - EPE, destaca-se pela abrangente indicação da magnitude dos problemas a serem enfrentados nas duas próximas décadas e constitui referência para novas discussões sobre as oportunidades e desafios apresentados pelo setor de energia, bem como para a identificação das medidas que, preventiva e corretivamente, devam ser tomadas a partir de agora para assegurar o equacionamento do balanço energético, nesse período.

Espera-se que as discussões que venham a resultar da apreciação do PNE 2030 também contribuam para a definição das prioridades da política energética, de forma mais objetiva do que aquela apresentada na Lei 9478/97, o que valorizará significativamente o planejamento energético do país.

O PNE 2030 parte da formulação de quatro cenários de evolução da economia brasileira e de sua inserção em possíveis cenários internacionais. No cenário B1, para o qual foram estimadas as demandas de energia global e elétrica e que indica como deveriam ser atendidas, a taxa média de crescimento da economia é de 4,1% ao ano. Esta hipótese é bastante otimista, em vista dos resultados alcançados nas últimas décadas, embora fique aquém dos anseios da sociedade, dado que apenas duplica a renda per capita ao final do período. Nos demais cenários as taxas de crescimento da economia apresentam valores que variam de 5,1%, no cenário A, a 2,2% no cenário C. Entende-se que a escolha do cenário que foi detalhado não envolveu conotação probabilística. Considera-se, todavia, que seus valores proporcionem uma perspectiva apropriada ao planejamento da oferta, que não deve ser nem insuficiente nem excessiva.

A elasticidade média do consumo total de energia e a do consumo de energia elétrica, implícitas nos valores do cenárioB1, a primeira de 0,86 e a segunda de 0,98, denotam significativo esforço no sentido do aumento da eficiência energética do país. A apresentação do PNE 2030 veiculada pela EPE na Internet explicita os montantes e origens da conservação de energia elétrica. É desejável que uma próxima versão confira pelo menos o mesmo destaque à economia de combustíveis, dada sua importância para o aumento da eficiência e da sustentabilidade da economia e para que o país contribua para a redução das emissões mundiais de gases de efeito estufa. Em particular, será desejável focalizar o consumo nos transportes, onde predomina o uso de derivados de petróleo, indicando metas específicas de efetivação do seu relevante potencial de aumento de eficiência.

Não está claro mas se presume que os usos não energéticos e o consumo do setor energético tenham sido acrescidos ao consumo total para efeito do cálculo das necessidades de oferta.

No tocante à definição das fontes de oferta de energia, entende-se que o PNE 2030 seja otimista tanto em relação à autonomia energética quanto à participação das fontes renováveis no conjunto da oferta de energia do país. Seja no que diz respeito à produção de petróleo e gás natural, para a qual conta com reservas ainda incertas, seja na expansão do aproveitamento hidrelétrico, de cerca de 90 GW, o que implica em que também venham a ser implementados projetos que envolverão notáveis dificuldades, principalmente ambientais.

Por outro lado, a contribuição da energia nuclear parece modesta, dado seu baixo impacto climático e seu custo de produção competitivo. Embora se reconheça que existam restrições ao emprego dessa fonte de energia, relacionadas à deposição dos rejeitos e à possibilidade de desvio de material radioativo, considera-se que estes aspectos ou serão impeditivos e então o programa nuclear poderia ficar ainda mais reduzido ou serão objeto de controles confiáveis, como parecem considerar tantos países empenhados na expansão de sua capacidade geradora baseada nessa energia. Neste caso, que parece ser o brasileiro, a instalação de mais 4 GW, além dos1,3 GW de Angra III, poderia ser ampliada para reduzir a expansão do emprego de combustíveis fósseis e, portanto, das emissões de gases de efeito estufa, do próprio setor elétrico. Essa ampliação também poderá beneficiar os custos de produção dos insumos requeridos para esta modalidade de geração, mediante ganhos de escala.

A expansão da produção de cana de açúcar prevista, de 420 para 1140 milhões de toneladas anuais, envolve desafios que deveriam ser explicitados, com destaque para o custo de oportunidade do uso da terra, pois implica em quase triplicar a área plantada. Também caberá levar em conta a necessidade de infra-estrutura viária e os custos adicionais de transporte do álcool, quando parte expressiva de sua produção ocorrer em áreas afastadas do mercado. Por outro lado, a contribuição prevista da biomassa para a geração de energia elétrica afigura-se pequena, notadamente a da cana de açúcar, frente à expansão considerada para a sua produção. Entende-se que se tenha considerado que parte dessa biomassa venha a ser destinada à produção de álcool, via hidrólise. Este constitui um ponto que também caberá examinar, à medida que a economicidade dessa conversão se torne mais vantajosa do que a utilização da biomassa residual para produção de energia elétrica.

A produção de álcool considerada no PNE 2030 aumentaria à taxa média de 5 % ao ano, que superará a demanda do conjunto gasolina/álcool, principalmente se for considerado que a eficiência dos veículos leves deverá aumentar significativamente, graças à difusão do emprego da tração elétrica. A adoção de veículos híbridos, que proporcionam aumentos de rendimento de pelo menos 30 % e já está assumindo escala significativa nos EUA e no Japão, poderá ser acompanhada pela ampla utilização de veículos a bateria, cujo efeito negativo no mercado de combustíveis será muito maior do que o aumento provocado no de energia elétrica.

Observa-se que com a produção de cana prevista em 2030 seria possível acionar cerca de 20 GW disponíveis para o mercado, durante sete meses do ano, enquanto o PNE 2030 só considera a quinta parte desse potencial de geração elétrica. Note-se que este potencial só recentemente começou a ser eficientemente utilizado e que em 2030 mesmo as usinas e destilarias recentemente instaladas terão alcançado o fim de sua vida útil.

No que diz respeito ao emprego do gás natural, o PNE 2030 poderia não só mencionar, mas destacar a importância de utilizá-lo na cogeração, que constitui a maneira de maximizar o aproveitamento da energia desse combustível. Por outro lado, caberia prever uma política para o GNV, que hoje já alimenta uma frota de mais de um milhão de veículos, que o utilizam com muito baixa eficiência, principalmente num enfoque abrangente, como o "do poço às rodas". Enquanto esse uso do gás natural foi inicialmente estimulado para o aproveitamento de gás associado e destinado a taxis, agora também está sendo empregado, com estímulos fiscais, para uso particular, o que deve estar contribuindo para a rápida expansão desse consumo, que se aproxima dos 8 milhões de metros cúbicos por dia.

Numa próxima versão desse plano de longo prazo também caberia discutir o papel da lenha, que hoje tem o mesmo peso no balanço energético nacional que a energia hidráulica. Essa fonte é utilizada in natura por diversos setores, principalmente o residencial, e sob forma de carvão vegetal, pela indústria metalúrgica, principalmente na produção de ferro gusa. Boa parte da produção desse carvão é feita a partir do desmatamento de florestas nativas, com grave prejuízo ambiental, e transportado a grandes distâncias, com consumo de óleo diesel. Por esta razão, pela sua importância econômica e social e porque a racionalização da produção de lenha e de carvão poderá criar nova fonte sustentável de energia efetivamente renovável este assunto deveria ser objeto de considerações mais etalhadas.

Complementarmente, também caberá considerar, ainda que em âmbito que transcende o setor de energia, se exportações que dependam de insumos cuja obtenção tenha grande impacto ambiental são vantajosas para o país.

Considera-se que à medida que a preocupação mundial com o aquecimento global venha a constituir um fator preponderante nas decisões referentes à área energética, a prioridade das soluções menos intensivas em emissões aumentará de forma expressiva, mediante a valoração das externalidades das diversas alternativas e de sua inclusão nas possíveis comparações. Conseqüentemente, a expansão da oferta tenderá a considerar mais favoravelmente do que na atualidade soluções baseadas na energia renovável ou nuclear, enquanto às energias de origem fóssil caberá papel complementar, embora expressivo. Dessa forma, as novas fontes que serão mobilizadas caso a expansão hidrelétrica ou a conservação de energia elétrica venham a ser inferiores às consideradas, serão predominantemente fósseis e conduzirão a um quadro mais desfavorável ao meio ambiente do que o indicado no PNE 2030.

Entende-se que, numa próxima versão do PNE 2030, se estenda o detalhamento conferido ao cenário B1 aos demais cenários. Será desejável detalhar, em todos os cenários, o atendimento das necessidades de uso final de combustíveis, principalmente em transportes, bem como contemplar as possibilidades de aumento de eficiência no seu emprego e que medidas permitirão alcançá-la.. Observa-se que a expansão da geração de energia elétrica de cada um dos demais cenários não constituirá uma simples ampliação ou redução daquela apresentada para o cenário B1, mediante antecipação ou adiamento de projetos, visto que a natureza de cada cenário condicionará a melhor forma de atender a respectiva demanda.

Destaca-se que diferentemente do Plano Decenal, o detalhamento, projeto por projeto, não é tão relevante no contexto do plano de longo prazo e sim a importância de seus componentes, conforme sua natureza, e a época de sua implementação. Assim, no tocante ao programa de expansão nuclear, o que mais importa, de imediato, é que providências precisam ser tomadas, em termos de aquisição de tecnologias, formação de pessoal, definição de normas complementares de qualidade, segurança e aceitabilidade sócio-ambiental, formação de quadros técnicos e gerenciais, para que essa expansão seja possível. Analogamente, o aproveitamento do potencial hidrelétrico considerado no PNE 2030 exigirá ampla extensão e atualização dos inventários e orçamentos dos principais projetos, segundo critérios uniformes que assegurem sua comparação, incluindo aí os custos a serem incorridos para viabilizar seu licenciamento ambiental.

Outros aspectos que sejam relevantes para a implementação dos planos, em particular a capacitação da indústria nacional e a regulamentação dos setores para os quais se deseje atrair investimentos privados também deveriam ser considerados, para que medidas de longo prazo de maturação não venham a ser indevidamente adiadas. Um aspecto a ser considerado na expansão do setor elétrico é a alocação dos custos de transmissão às usinas mais remotas, pois esse critério pode influenciar significativamente a competitividade de sua energia. Nesse sentido, é importante preservar a transparência dos custos locacionais dos projetos. Para tanto, será necessário agregar aos custos de geração de cada usina aqueles que forem necessários para integrá-la ao sistema interligado. Também parecem questionáveis interligações que só se viabilizariam econômica e financeiramente se incorporadas à rede básica ou seja, se seu custo também for arcado por consumidores que não são beneficiados por essas instalações. Também será oportuno considerar a viabilidade financeira da implementação dos planos setoriais, tendo em vista as dificuldades de cobrança decorrentes de inadimplência e roubo de energia, bem como tarifas majoradas por elevada carga fiscal, além de outros encargos.

Dado que cenários não constituem necessariamente projeções mais ou menos prováveis, mas histórias do futuro intrinsecamente coerentes e possíveis, além de autônomas, sua utilização requer que se identifiquem os aspectos e elementos comuns a serem buscados ou evitados. A partir daí será possível e mais seguro definir um planejamento voltado para o longo prazo, que seja dotado da robustez desejada quando se trata de horizontes temporais que implicam em considerável nível de incerteza. Dentre seus elementos mais relevantes estarão as medidas que, impreterivelmente, deverão ser tomadas em futuro próximo.

Em suma, as ressalvas mais significativas que podem ser feitas a essa primeira versão do PNE 2030 dizem mais respeito ao que ainda não foi apresentado do que ao seu conteúdo, conforme publicado na Internet. Está aí incluída a importância de equilibrá-lo, ampliando o tratamento dispensado aos combustíveis, particularmente àqueles destinados ao setor de transportes, bem como a de enunciar as conclusões e recomendações decorrentes das análises dos cenários considerados. Finalmente cabe lembrar que a obtenção dos complementos sugeridos acima representa tão somente a continuidade do planejamento, que é sua característica essencial e mais relevante. Já foi dito que planos pouco valem (até porque geralmente já estejam obsoletos ao serem publicados) mas que o que é realmente importante é planejar. E nessa atividade as múltiplas circunstâncias e possibilidades devem ser consideradas, pois "o inesperado acontece".

Pietro Erber é diretor do INEE.
26/12/2006

[Fonte: INEE]


Leia também

Edson Szyszka, do INEE: Eficiência Energética na Indústria

Nos países membros da IEA (International Energy Agency), entre os anos de 1974-2010, a energia total recuperada por ações de EE foi maior que a energia total comprada de qualquer outra fonte, inclu...
Leia mais...

Jayme Buarque, do INEE: Sankey Energia, Fonte Ao Uso, Brasil 2019

Em sua colaboração com a EPE, possivelmente a principal contribuição do INEE tenha sido mostrar a importância de apresentar o balanço energético anual, em forma de tabela, conforme o BEN, num conju...
Leia mais...

Pietro Erber, do INEE: Inserção de Fontes Intermitentes no Futuro Quadro Energético

Quando se procura vislumbrar a evolução do balanço energético brasileiro, mesmo num horizonte de pouco mais de dez anos, alguns elementos parecem bastante seguros para que se comece a delinear uma ...
Leia mais...

Pietro Erber, do INEE: 0 Setor Elétrico e a Privatização da Eletrobrás

É possível que a Eletrobrás venha a ser privatizada, mediante redução da participação da União em seu capital votante. Previamente, porém, dadas as relevantes questões impostas ao setor elétrico e ...
Leia mais...

Pietro Erber, do INEE: Nova Matriz Energética - Armazenamento de Energia

Nas duas últimas décadas, a estrutura da capacidade geradora sofreu alterações significativas, com o aproveitamento de expressivos potenciais hidrelétricos da Amazônia adotados de escasso armazenam...
Leia mais...

Pietro Erber, do INEE: Mercado de Etanol e Política Energética

A extraordinária queda das cotações internacionais do petróleo levou à redução dos preços da gasolina, enquanto as crises, sanitária e econômica, causavam forte diminuição da demanda por combustíve...
Leia mais...

Pietro Erber, do INEE: Geração Distribuída, desafios e oportunidades

Para evitar o consumo de combustíveis fósseis e reduzir custos, o setor elétrico precisa utilizar fontes renováveis, sazonais ou intermitentes, como a solar e a eólica, ainda pouco aproveitadas. Su...
Leia mais...

Pietro Erber e Marcos José Marques, do INEE: Eficiência Energética, uma busca permanente

A eficiência energética é condição fundamental para a competitividade econômica e para o atendimento dos compromissos ambientais e sociais. Em vários países, os resultados alcançados recentemente t...
Leia mais...

Pietro Erber, do INEE: Questões do Modelo do Setor Elétrico

O setor elétrico brasileiro enfrenta uma crise grave e complexa. Tal qual no início dos anos 1990, observa-se perda de remuneração em muitas empresas, contestação de cobranças pelo suprimento de...
Leia mais...

Lançamento do Portal Brasileiro de Indicadores de Eficiência Energética - PBIEE

O evento será realizado no dia 18 de junho de 2019 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em Campinas, São Paulo. Organizado e promovido pela International Energy Initiative - IEI Brasi...
Leia mais...

Jayme Buarque, do INEE: Por um uso mais verde do etanol

Quando o preço do petróleo quadruplicou no início do século, a demanda por carros a etanol aumentou muito no Brasil, pois o combustível renovável ficou bem mais competitivo que a gasolina. <...
Leia mais...

INEE divulga o Relatório de Atividades de 2018

Em 2018, o INEE continuou a desenvolver suas atividades através das ações resumidas em seu Relatório abaixo. Desde que foi criado, foi o primeiro ano em que não organizou um evento para discutir...
Leia mais...

Pietro Erber, do INEE: Renda Hidrelétrica

Usinas hidrelétricas têm, normalmente, vida útil bem mais longa do que o período necessário para a amortização do investimento realizado. Após esse período, os custos da energia gerada compreend...
Leia mais...

Pietro Erber, do INEE: Considerações sobre o Novo Modelo do Setor Elétrico

O adiamento da alienação do controle acionário da União na Eletrobrás apresenta ao Governo a oportunidade de concentrar sua atenção na definição do modelo do setor elétrico, no qual o papel dess...
Leia mais...

Osório, Saudades

Osório de Brito faleceu no dia 15 de maio, com 79 anos. Engenheiro eletricista formado pela Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, pós-graduado em engenharia econômica pela UFR...
Leia mais...

Newsletter Fale Conosco